“Entrei no Instituto Emílio Ribas como médico infectologista
em 1984, no período que coincide com os primeiros casos de HIV-aids no Brasil.
Passei por outros tipos de epidemia ou surtos, como sarampo, meningite e
leptospirose. A estrutura do hospital teve muitas transformações ao longo dos
anos, mas, agora, foi a maior que eu vi em quatro décadas. Nunca presenciei uma
doença evoluir tão rápido. E há uma agravante: se você deixa os trabalhadores
do grupo de risco num ambiente vulnerável, como o hospital, o risco de
transmissão cresce. Tivemos, portanto, uma redução de funcionários para atender
os doentes e, por isso, nossa carga de trabalho aumentou. Isso significa um
ganho de stress.
A Covid-19 tem uma característica muito ruim: o paciente
pode estar relativamente estável de manhã e, à tarde, precisar ser intubado e
ir para a UTI. É uma doença que não escolhe cor, sexo, idade, gênero, cabe a
todos os seres humanos. E o pior é que não sabemos como será a evolução de cada
caso, o que torna o dia a dia ainda mais angustiante. Outras situações que
presencio: a de colegas que sucumbiram à enfermidade e estão internados e a de
famílias inteiras que foram afetadas pelo novo coronavírus. Parece um efeito
dominó, em que, uma a uma, as pecinhas vão tombando. Não bastasse toda a pesada
carga hospitalar, há as tarefas domésticas, como fazer faxina e preparar as
refeições, já que os restaurantes estão fechados e almoço no hospital.
Minha filha caçula foi ficar com o namorado durante a
pandemia. Ele se responsabilizou pelas compras no mercado e, numa saída, se
contaminou, mas conseguiu se recuperar bem. Na segunda-feira 18, tive de
internar minha filha, também com diagnóstico de Covid-19 e com comprometimento
pulmonar. Ela tem 32 anos e está num hospital particular porque possui convênio
médico, o que a maioria da população brasileira não tem. E, embora eu trabalhe
num hospital público, não acho que ela deva ocupar um leito, já que outros, sem
as mesmas condições financeiras, vão precisar dele. Sinto falta da família.
Minha neta, filha da minha primogênita, nasceu em fevereiro e, desde março, não
tenho mais contato presencial com elas, só por chamadas de vídeo. Numa pandemia
como esta, devemos olhar não só para nós mesmos, mas também para o próximo.
Ao mesmo tempo, vivo uma situação completamente maluca:
presencio carreatas e buzinaços na porta de hospitais do Brasil, mais
especificamente na cidade de São Paulo, de pessoas que não acreditam na
infecção. No mundo inteiro, os cidadãos iam para as sacadas de seu apartamento
para aplaudir as equipes de saúde e promoveram espetáculos belíssimos de
solidariedade.
Não consigo entender o comportamento dos negacionistas, que
ouvem as indicações daquele que eles classificam de “mito” e desqualificam as
orientações de isolamento social feitas pelos profissionais da área, como se a
pandemia fosse uma criação da mídia.
Passei a dar entrevistas porque, desde os primeiros casos,
assumi a posição de que a população tem o direito de obter as informações mais
claras. Mas essa visibilidade me trouxe prejuízo. Tenho minhas redes sociais
abertas, não só para amigos — e foi aí que comecei a receber mensagens privadas
de pessoas me atacando. É uma gente que eu nunca vi na vida e me xinga de
vários palavrões, só porque eu proponho a única estratégia razoável e eficaz de
combate à transmissão, que é o isolamento. Mas também recebo carinhosas
mensagens de incentivo daqueles que se sentem representados e protegidos.
Eu e minha esposa, Grace, que também é infectologista do
Emílio Ribas, saímos de casa todos os dias e não sabemos se vamos voltar porque
sempre tem alguém que pode precisar da gente. Até brinco dizendo que não vejo a
hora de entrar em quarentena. Mas não temos essa possibilidade, pois nosso
trabalho é o da linha de frente. Nós, médicos, não somos heróis. Não há
heroísmo, e sim responsabilidade e comprometimento. O possível, todo mundo faz.
Devemos fazer o impossível para promover o bem-estar de todos. E, fazendo isso,
tenho certeza de que dormimos com a cabeça tranquila.” – Veja.
Carlos Magno
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