A história diz tanto sobre o Brasil, sua elite e suas
mazelas que se tornou impossível ficar indiferente. Enquanto sua patroa, Sarí
Corte Real, fazia as unhas com uma manicure no quinto andar de um arranha-céu
de luxo no Recife, a empregada doméstica pernambucana Mirtes Renata Santana de Souza,
de 33 anos, saiu para levar para passear a cadela da família da empregadora,
Mel, uma buldogue de seis meses. Ao voltar, encontrou seu filho único, Miguel,
de 5 anos, que havia levado consigo ao trabalho por não ter com quem deixá-lo,
caído já quase sem vida na área da piscina. O garoto foi levado às pressas, no
carro da patroa, para o Hospital da Restauração, mas morreu na pediatria meia
hora depois de ter despencado de uma altura de 35 metros.
A principal hipótese para a morte é uma queda acidental,
consequência direta do descaso da patroa, que deixou o garoto que devia estar
sob seus cuidados vagar sozinho pelo prédio, e do acaso, sempre tão frequente
nessas tragédias. O menino, buscando pela mãe, teria subido ao nono andar,
entrado em uma área restrita e caído para a morte ao se desequilibrar. No
entanto, duas semanas depois da tragédia, a Polícia Civil de Pernambuco começou
a investigar uma outra possibilidade, a de que Miguel tenha sido jogado lá do
alto.
Por enquanto, a principal evidência a sustentar essa linha
de investigação é que Miguel não teria conseguido chegar sozinho ao local de
onde caiu. Nesta semana, o delegado Ramon Teixeira determinou que os peritos do
Instituto de Criminalística voltassem ao prédio. Os investigadores cogitam que seria
difícil que Miguel, de 1,15 metro de altura, tivesse ultrapassado a mureta de
1,20 metro do corredor que levava à área onde ficam armazenados os
condensadores de ar-condicionado do nono andar, de onde ele despencou. Essa
área é de acesso restrito aos funcionários dos edifícios conhecidos como “Torre
Gêmeas”, dois espigões de 41 andares e 134 metros de altura cada, intitulados
Píer Mercúrio de Nassau e Píer Duarte Coelho. Os arranha-céus foram erguidos
nas proximidades do cais de Santa Rita, uma área tombada pelo Patrimônio
Histórico, e por isso são alvo de ação do Ministério Público. A construtora foi
condenada em instâncias inferiores, e o caso está no Superior Tribunal de
Justiça.
Para cair do nono andar, além de subir pela mureta e passar
pela janela, o garoto teria ainda de caminhar sobre os equipamentos de ar
refrigerado e escalar mais uma grade de 1,30 metro feita de hastes de alumínio.
Para seguir nessa linha de investigação, e então decidir se vale aprofundá-la
ou se tratou mesmo de um acidente, como tudo indica, a polícia vai ouvir
moradores do nono andar e os funcionários do prédio responsáveis pelas chaves
da área de acesso restrito. Por enquanto, falta tudo, além da suposição
inicial: quem seria o suspeito, o que estaria fazendo ali e por que teria
decidido jogar o garoto.
“A princípio, ele tentou escalar e caiu lá de cima de forma
acidental. Mas as investigações não estão conclusas. Falta comprovar se é
possível ele ter caído sozinho”, disse o perito criminal André Amaral.
A mãe de Miguel, que ajudou a chamar a atenção para o caso
com seu depoimento sobre o descuido mortal da patroa para com seu filho, não
descarta a hipótese de que ele tenha sido jogado. “Agora, mais calma, olhei
atentamente as imagens feitas pela câmera do elevador. O meu filho desce no
nono andar, abre aquela porta de incêndio e passa por ela como se tivesse
encontrado alguém do outro lado. Quem poderia estar ali? Só a polícia poderá
descobrir”, disse Mirtes.
Moradores reforçaram nas redes sociais a tese do assassinato,
a partir da mesma questão sobre a dificuldade de escalar a mureta. Postaram de
forma anônima imagens em que fazem medições com trenas e colocam crianças de 5
anos ao lado do local por onde Miguel passou para mostrar quão difícil é uma
criança escalar uma mureta de 1,20 metro. “A história de que ele subiu na
mureta, caminhou pelo duto de ar-condicionado e subiu pela grade não nos
convenceu”, escreveu um morador que fez questão de postar sua foto no Instagram
ao lado da mureta. “Reparem que tenho 1,75 metro de altura e até para mim essa
janela é alta”, escreveu.
“A polícia investiga a hipótese de que Miguel tenha sido
jogado. O principal indício a sustentar essa tese é que o garoto, de 5 anos e
1,15 metro, não conseguiria subir sozinho na mureta de 1,20 que levava à área
de onde ele despencou”.
Como Miguel estava sob seus cuidados, Sarí foi presa e
autuada por homicídio culposo, quando o ato não é considerado intencional. Foi
solta em menos de 24 horas após pagar uma fiança de R$ 20 mil. A prisão ocorreu
depois de a polícia ter acesso às imagens do circuito de câmeras. Essas imagens
mostram Miguel insistindo para entrar no elevador. O garoto entra lá seis vezes
e em quatro delas Sarí o convence a sair. Na quinta vez ele entra correndo, e a
patroa o puxa lá de dentro pelo braço. Na sexta vez, Miguel adentra o elevador
correndo e aperta quatro botões, incluindo o sétimo e o nono. Sarí surge em
seguida e trava a porta com o braço. Ela argumenta e, em seguida, aperta no
botão da cobertura. É um mistério o motivo pelo qual a patroa mandou o menino
para o último andar. As portas se fecham, e Miguel segue sozinho. O elevador
para no sétimo, mas ele não desce. A próxima parada é o nono. Lá, o menino sai,
abre a porta de incêndio e adentra para a morte. “Por que a senhora apertou o
botão da cobertura? Por quê?”, questionou Mirtes pelo celular. Sarí não
respondeu. Pediu desculpas aos prantos e desligou.
Segundo a polícia de Pernambuco, Sarí foi presa porque agiu
com negligência ao deixar o garoto sozinho no elevador. Ela vai responder ao
processo em liberdade, acusada de abandono de incapaz, o que prevê uma pena de
quatro a 12 anos de reclusão. Sarí chegou a ir ao velório de Miguel com o
marido, Sérgio Hacker, prefeito da cidade litorânea de Tamandaré, a 100
quilômetros do Recife. O casal queria dar um abraço em Mirtes, mas foi
hostilizado por populares e teve de deixar o local. Na sexta-feira 5, Sarí
escreveu uma carta aberta à ex-funcionária. Ela disse: “Como mãe, sou
absolutamente solidária ao seu sofrimento. Miguel é e sempre será um anjo na
sua vida e na vida da sua família (...) Te peço perdão. Não tenho o direito de
falar em dor. Mas, esse pesar, ainda que de forma incomparável, vai me
acompanhar também pelo resto da vida”.
A nova linha de investigação pode ter impacto direto nas
acusações contra Sarí. Se Miguel tiver sido jogado, ela seria inocentada por
ter deixado o garoto sozinho? Dois criminalistas ouvidos por ÉPOCA divergem na
resposta. O advogado Pierpaolo Bottini assegura que a patroa se livraria da
responsabilidade. “Em tese, ela seria inocentada, caso seja provado que houve
uma intervenção de um outro agente que não seja ela (Sarí). Nesse caso, a
patroa deixaria de responder por um crime”, afirmou Bottini. Já Augusto de
Arruda Botelho tem outra avaliação. “Uma resposta mais precisa depende da análise
das provas. Em tese, se um crime de homicídio ocorre em decorrência do abandono
de um incapaz, quem tinha o dever de cuidado desse incapaz não deixa de
responder pelo crime de abandono. A pena pode, inclusive, ser agravada, caso
dolosamente esse abandono cause lesões ou morte”, disse.
Sarí Corte Real e Sérgio Hacker (PSB) são conhecidos na
sociedade pernambucana. Ela é maratonista e ele pertence a uma oligarquia
regional que comanda administrações municipais de cidades do litoral. Sérgio é
prefeito de Tamandaré; sua mãe, Isabel Hacker (PSB) administra a cidade de Rio
Formosa; e seu tio, France Hacker (PSB) está à frente da prefeitura de
Sirinhaém, todas próximas umas das outras. Por causa da denúncia de que Sérgio
Hacker mantém funcionários-fantasmas na folha de pagamentos de Tamandaré,
auditores do Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco bateram à porta de seu
gabinete na terça-feira 9 em busca de provas. O órgão apreendeu documentos que
comprovam que Mirtes e sua mãe recebiam sem trabalhar em órgão público. Mirtes
estava lotada no Setor de Atividades e Manutenção da prefeitura, enquanto a mãe
dela, Marta Maria, recebia como gerente de divisão. Ambas tinham salário de R$
1.300. A Câmara de Vereadores de Tamandaré já fala em impeachment de Sérgio Hacker.
Sarí e o marido mantêm uma casa à beira-mar em Tamandaré.
Era ali que a família estava confinada por causa da pandemia. Até que Sarí
pediu que profissionais de beleza fossem lá fazer unha, cabelo e limpeza de
pele. Uma delas teria levado o coronavírus para a casa de praia e contaminado
parte da família, incluindo Sarí e a filha de 3 anos. Mirtes e Miguel também
acabaram infectados, mas ninguém desenvolveu os sintomas.
Sarí então levou a filha para o isolamento no apartamento do
Recife; Mirtes e Miguel também voltaram para a capital. “Queria muito que o
tempo voltasse atrás para o meu filho poder estar aqui ao meu lado. Quando eu
estava descendo para passear com a Mel, ele e a filha da dona Sarí pediram para
ir comigo, mas eles estavam correndo pela sala, bagunçando tudo e não os levei
como castigo. Se arrependimento matasse, eu estaria enterrada ao lado do meu
filho”, contou Mirtes.
A vida de Mirtes e a de Sarí se cruzaram em 2016. Marta
Maria, mãe de Mirtes, passava roupa e fazia faxina no apartamento de 247 metros
quadrados da família Corte Real. Marta reclamava para os patrões de que não
dava conta do serviço e conseguiu convencê-los a contratar a filha para fazer
uma diária semanal, a R$ 120. Mirtes se mostrou tão eficiente que foi
contratada. Dois meses depois, foi comunicada por Sarí que tanto ela quanto a
mãe seriam incluídas na folha de pagamentos da prefeitura. Para isso, tinham de
abrir conta no Banco do Brasil. “Eu aceitei porque passaríamos a ter vantagens,
como salário-família”, justificou Mirtes.
Na casa dos Corte Real, as tarefas ficaram divididas assim:
Marta cuidava da roupa e da faxina de metade do apartamento. Mirtes ficava
incumbida da outra metade e da cozinha. “Nunca fui vítima de preconceito
naquela casa. Eu amava aquela família. Sinto saudades das duas crianças —
filhas dos meus patrões — e até da cadela que eu levava para passear”, disse
Mirtes. “Mas não dá para falar em perdão agora, porque a dor que eu sinto é
muito grande (...) Independentemente de como meu filho caiu daquele prédio, se
a dona Sarí tivesse tido um pouquinho de paciência com meu único filho, eu não
estaria mergulhada nesta dor sem fim”, desabafou – Época.
Carlos Magno
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