Um quilo de laranjas, de açúcar ou de sequilhos, pesa, por
definição, o mesmo que o cilindro de platino-irídio guardado sob várias redomas
protetoras e trancado a três chaves no porão do Pavilhão de Breteuil, na
periferia de Paris. Esse Protótipo Internacional do Quilograma (IPK, na sigla
em inglês), usado para calibrar os padrões oficiais da unidade de massa, teve
sua aposentadoria anunciada oficialmente nesta sexta-feira, após 129 anos de
serviços prestados.
Na última sessão da 26ª. Conferência Geral de Pesos e
Medidas realizada nesta sexta em Versalhes, os 60 Estados membros votaram
unanimemente por redefinir o quilograma: a partir do ano que vem, a unidade de
massa não será um objeto físico, e sim um valor derivado de uma constante da
natureza. Essa mudança não terá nenhuma implicação no carrinho de compras e não
será notada no dia a dia, mas talvez seja muito importante em âmbitos
científicos, como o desenvolvimento de medicamentos.
“É a história da ciência sendo feita. Isso será contado nos
livros didáticos”, afirmou José Manuel Bernabé, diretor do Centro Espanhol da
Metrologia e representante da Espanha na conferência. Os metrologistas –
especialistas no campo da medição de magnitudes – há anos preparam a mudança
para o Sistema Internacional de Unidades, que incluirá redefinições do mol, do
kelvin e do ampere para que estas unidades também se baseiem em constantes
universais.
O quilograma recebe especial atenção por ser a última
unidade fundamental cuja definição ainda depende da magnitude de um objeto
físico. E isso é um problema, afirmam os cientistas, porque tal objeto não é
imutável. No último século, a massa do IPK flutuou. Continua sendo um
quilograma, já que por convenção não pode haver incerteza em seu valor, mas com
relação à massa de outros padrões do quilograma variou em pelo menos 50
microgramas (milionésimos de grama). Isto ocorre porque o cilindro pode
acumular partículas de sujeira do ar, e perde pequenas quantidades de material
quando é limpo.
Esses microgramas não afetam a compra de frutas ou
sequilhos, mas precisam ser levados em conta na síntese de novos medicamentos,
por exemplo. Na pesquisa física, essas flutuações são “intoleráveis”. Conforme
explica Bernabé, com esta decisão “estão sendo implantados os alicerces para a
nova ciência, com menos incerteza para o desenvolvimento da tecnologia”.
“Sentimos sobretudo alívio de que a decisão esteja tomada”,
diz Stuart Davidson, chefe de metrologia de massa no Laboratório Nacional de
Física (NPL) do Reino Unido, um dos centros mais envolvidos na redefinição do
quilo. “Tem gente que passou toda a sua vida profissional trabalhando nisso.
Agora podemos nos centrar em melhorar a tecnologia e a precisão das nossas
medições”, acrescenta.
Outro incentivo para retirar o IPK foi o perigo de que o
cilindro seja danificado ou deformado. O metro, que costumava ser o comprimento
de uma barra de platina, já foi redefinido em 1983 justamente para evitar esses
problemas. Ao fixar a velocidade da luz – constante no vácuo – com um valor
numérico universal, os metrologistas resolveram definir o metro como “a
distância percorrida pela luz em 1/299.792.458 segundo”. Qualquer laboratório capaz
de medir a passagem do tempo com precisão pode calibrar sua própria barra de
metro.
Revolução na Medição
Com o quilo ocorrerá o mesmo, quando as mudanças aprovadas
entrarem em efeito, em 20 de maio de 2019, aniversário do Tratado do Metro de
1875. "Em 20 de maio de 2019 se viverá a maior revolução na medição desde
a Revolução Francesa", disse o prêmio Nobel Bill Phillips sobre o palco da
convenção. Em vez da velocidade da luz, a cifra imutável escolhida para definir
a unidade de massa é a constante de Planck, um valor que descreve os pacotes de
energia emitidos em forma de radiação. A aprovação dessa definição do quilo
demorou tantos anos porque até recentemente não havia meios tecnológicos para
levá-la à prática. Agora, graças a um aparelho chamado balança de Watt (às
vezes balança de Kibble, ou balança de potência), podem-se calibrar padrões do
quilograma, já que o valor da constante de Planck é conhecido.
A balança de Watt lembra uma balança de pratos, mas o objeto
a pesar não se equilibra com outra massa, e sim com uma potência
eletromagnética. A potência é calculada a partir do valor da corrente elétrica
aplicada para gerá-la e do valor da constante de Planck, ambos conhecidos.
Quando alcança um equilíbrio com o prato do peso, permite calibrar padrões de
massa com a menor margem de erro obtida até hoje (para um quilo, a margem de
erro é de 20 microgramas).
A elegância da mudança para o Sistema Internacional é que,
no futuro, seria possível desenvolver uma tecnologia mais avançada que permita
derivar o valor de um quilograma – a partir da constante de Planck – com
precisão ainda maior que a obtida pela balança atual, sem que seja necessário
alterar a definição. Alguns cientistas propunham definir o quilograma
utilizando a constante de Avogadro, que relaciona a quantidade de átomos ou
moléculas com a massa de uma amostra, em lugar da de Planck. O consenso foi
chegar a um nível empírico de exatidão que permita usar cifras fixas de ambas
as constantes para obter o mesmo valor numérico do quilograma.
A constante de Avogadro, de cujo valor também depende a nova
definição do mol, foi fixada medindo a quantidade de átomos em uma esfera
perfeita de silício. Espera-se que nos próximos anos todos os valores
experimentais do quilograma se aproximem mais, conforme diminui a margem de
erro dos diferentes aparelhos de medição. “Os experimentos melhoraram muito nos
últimos anos. Nunca vão concordar exatamente, mas agora é um momento tão bom
como qualquer outro para realizar a mudança”, diz Davidson.
O que será do cilindro de platino-irídio guardado no porão
do Escritório Internacional de Pesos e Medidas? “Continuará existindo”, afirma
Bernabé: “Mas será um padrão a mais, com uma incerteza que se pode calcular”.
Além do quilograma, os 60 membros com direito a voto também
aprovaram a redefinição de outras três unidades baseando-se em constantes
universais invariáveis. Desse modo, o ampere (que mede a corrente elétrica)
será calculado em função da carga elementar; o kelvin (temperatura) com base na
constante de Boltzmann; e o mol (quantidade de substância) em função da
constante de Avogadro – El País.
Carlos Magno